Os dias de carnaval estão entre as primeiras e mais profundas marcas da minha infância. Não porque eu andasse por aí em algum clube ou participando de algum bloco de rua. É que na minha terra e naquela época, carnaval eram três dias de adoração ao Santíssimo Sacramento visando reparar os muitos pecados que se cometiam naqueles dias pelo Brasil afora.
Na minha inocência tentava, em vão, compreender o que havia em comum entre adoração-carnaval e pecado. E ficava imaginando que tipo de pecado era aquele que colocava tanta gente no inferno. Claro que, com o tempo, fui tentando organizar meus pensamentos e esquecer aquelas marcas negativas. Mas confesso que ainda hoje carrego comigo algumas daquelas marcas.
Infelizmente, não sou o único a carregar as marcas
negativas de um discurso moralizante contra o carnaval e seus pecado. Lá no
fundo, muitos católicos continuam associando carnaval e pecado, e sobretudo
"aqueles pecados". Já conseguiu dar um grande passo no caminho
da liberação de uma mentalidade doentia que é capaz de perceber que
"aqueles" pecados não acontecem só no carnaval, e que os pecados que
acontecem no carnaval nem sempre são os piores. Mas seria de esperar que os
cristãos que já chegaram ao terceiro milênio dessem alguns passos em frente. E
é neste sentido que gostaria de acenar para alguns pontos.
1) A maldade que "se vê" no mundo,
depende muito do olhar de cada um. Lembro-me que, de novo, quando criança,
ir à praia era considerado um dos piores pecados. Só arriscavam ir à praia
pessoas más... Hoje, qualquer pessoa normal concordará que esta é uma das
poucas e boas práticas de lazer que nos restam: "descansar na praia".
E já faz muitos anos que não se vê mais ninguém comentar o tamanho do maiô ou
do biquini, ou de outros trajes menores ainda. E o mais curioso é que,
felizmente, ninguém mais fica se preocupando com os centímetros a mais ou a
menos de roupa que se usa. Como nos diz o Evangelho, precisamos primeiro tirar
a trave do nosso olho, para só então podermos tentar remover o cisco que se encontra
no olho do outro. Tudo é uma questão de olhar... "é do coração que brotam
todos os pecados..."; e tudo é questão de ambiente. Uma mesma
"veste" que não escandaliza ninguém na praia, pode fazer mal e
revestir-se de um sentido maldoso num outro ambiente.
2) Há muito para se aprender com as
"escolas de samba". As pessoas que têm "mente podre",
novamente, são capazes de ver alguns eventuais exageros nas escolas de samba.
Mas uma mente sã, será capaz de entrever não só a beleza do ritmo e das
coreografias, como será capaz, sobretudo, de discernir muitas virtudes
escondidas por trás daqueles desfiles. A primeira destas virtudes é resultante
de um trabalho "conjunto", e feito "com alma". Numa escola
de samba ninguém ganha ponto sozinho. A segunda é resultante da persistência, e
porque não dizer da renúncia a tantas distrações, como aquelas cultivadas pelos
"videotas", ou seja, por aquelas pessoas que perdem horas e mais
horas diante de programas fúteis de TV, ou de partidas igualmente fúteis de futebol,
ou de outro jogo qualquer. Muitos destes programas são carregados de violência.
Em pior situação só ficam aqueles que preferem imagens de guerras e de
destruição Solidariedade e disciplina são outras duas virtudes a serem
lembradas neste contexto.
3)O Carnaval é um exemplo de "invenção"
que brota da sabedoria cristã. Para entender a origem cristã do carnaval, devem
ser levados em consideração ao menos dois fatores: a tendência de
"batizar" certas festas pagãs e a consciência de que "ninguém é
de ferro". Quando estudamos a origem de várias de nossas festas e
celebrações litúrgicas, vamos encontrar nelas uma raíz pagã. Ou seja, a Igreja
nascente e dos primeiros séculos ficava atenta a certas festas e a certos
comportamentos pagãos, para superá-los através de uma espécie de sublimação.
Sabidamente o próprio dia do Natal tem a ver com uma festa pagã dedicada ao
"deus Sol". A introdução progressiva aos "mistérios da fé",
também tem algo a ver com uma certa necessidade humana de preservar contra
a banalização certas dimensões muito profundas da vida.
Pois bem, percebendo que os pagãos tinham alguns
dias de festividades mais intensas, e que com certa facilidade levavam a
exageros (festa do vinho, por exemplo), a Igreja, em sua sabedoria, entreviu no
carnaval uma possibilidade de os cristãos encontrarem maneiras alternativas
para se alegrarem e se descontraírem. Sabendo que "ninguém é de
ferro", a mesma Igreja que pregava a necessidade do jejum e da penitência,
sobretudo no período da Quaresma, olhou com bons olhos a organização de uma
espécie de "despedida" dos dias normais, para uma entrada corajosa no
período da Penitência. Não se poderia, sem mais, afirmar que a Igreja
"criou" o carnaval, através de uma espécie de decreto. Aliás este
sabidamente não é seu feitio. Mas pode-se dizer que a Igreja olhou com bons
olhos e até incentivou o "batismo" de dias de "folia", para
então poder concluir: "agora vocês que já brincaram peguem firme no
jejum quaresmal".
4) As considerações feitas acima nos levam à
algumas conclusões:
Primeira: toda e qualquer atividade, todo e
qualquer momento, podem ser propícios tanto para a graça, quanto para o pecado.
Às vezes os mesmos gestos podem traduzir graça ou pecado. Depende de quem os
faz, como os faz e com que motivações os faz.
Segunda: seria bom que, em vez de ficar
criticando o que se imagina ter acontecido, nós buscássemos no carnaval
alternativas para descansarmos, para depois, sim, pegarmos firmes na Quaresma.
É isto que fazem milhões de famílias: aproveitam estes dias para ir à praia,
conhecer algum local especial, visitar parentes e amigos, ou mesmo, ficam de
"papo para o ar". Lembro que as "mentes podres" de algumas
pessoas ficam vendo fantasmas onde eles não existem; ou mesmo, que certas
condenações moralizantes traduzem desejos ocultos, mas muito profundos dos
resmungões da vida. Lembremos o ditado: "quem desdenha quer comprar".
Terceira: para as pessoas de mente mais
aberta, ousaria sugerir que fossem criativas, buscando alternativas para
aquelas práticas eventualmente associadas ao Carnaval e que não condizem com
nossa compreensão cristã da vida, e que não convêm a nós cristãos. Falando mais
claro: por que não organizar um carnaval "leve" para nossas crianças
e adolescentes, para nossa segunda e terceira idades, mesclando danças, músicas
ritmadas, momentos de brincadeira e outras coisas interessantes?
Quarta: mas afinal, o carnaval é festa de Deus
ou do diabo? Para bom entendedor, meia palavra basta: tudo depende de como
você "imagina", "vê", ou "vive" o carnaval.
As manifestações de alegria profunda e verdadeira sempre vêm de Deus; as
"rosnadas" de mau humor sempre vêm do diabo. Ao que tudo indica, a
Igreja dos primeiros séculos mais temia os mal humorados do que os
"foliões", pois os primeiros são quase incorrigíveis, uma vez que se
julgam melhores do que os outros, e quem sabe até já "salvos";
enquanto os segundos, são capazes de apresentar mais disponibilidade para
cultivar certas virtudes cristãs, como as apontadas acima: trabalho em
conjunto, solidariedade, persistência, coragem para enfrentar os revezes da
vida...
Como os santos viviam o Carnaval?
É possível encontrar-se com Jesus nestes dias
Como será que os santos viviam esses dias de
Carnaval?
Essa pergunta desperta uma certa curiosidade. A
maior festa popular do país está se aproximando, fiquei muito surpreso ao ler
na obra: Meditações para todos os dias do ano, tiradas das obras
ascéticas de Santo Afonso Maria de Ligório, do padre Thiago Maria Cristini,
reflexões sobre este doutor da Igreja a respeito dessa festividade. Apresento
essa reflexão para nos ajudar a santificar este tempo, que, infelizmente, tem
sido de incentivo ao pecado por parte da mídia em geral.
“Guarde a fé ao teu amigo na sua pobreza, para que
também te alegres com ele nas suas riquezas” (Eclo 22,28).
A partir deste versículo, Santo Afonso nos ensina
que, por este amigo, a quem o Espírito Santo nos exorta a sermos fiéis no tempo
da sua pobreza, podemos entender Jesus Cristo, que especialmente nestes dias de
folia é deixado sozinho pelos homens ingratos e como que reduzido à extrema
penúria.
Se um só pecado, como dizem as Sagradas Escrituras,
já desonra a Deus, causando-Lhe injúria e desprezo, imagine quanto o Divino
Redentor deve ficar aflito neste tempo em que são cometidos milhares de pecados
de todas as espécies, por pessoas de todas as condições, e quiçá por pessoas
que são consagradas a Ele. Jesus Cristo não é mais susceptível de dor; mas, se
ainda pudesse sofrer, haveria de morrer nestes dias desgraçados e haveria de
morrer tantas vezes quantas são as ofensas que Lhe são feitas. Da mesma forma,
é por isso que os santos, a fim de fazerem um ato de desagravo ao Senhor pelos
tantos ultrajes, aplicavam-se no tempo de Carnaval, de modo especial, ao
recolhimento, à penitência, à oração, e multiplicavam os atos de amor, de
adoração e de louvor para com o seu Bem-Amado.
Nesse
tempo carnavalesco, Santa Maria Madalena de Pazzi passava as
noites inteiras diante do Santíssimo Sacramento, oferecendo a Deus o Sangue de
Jesus Cristo pelos pobres pecadores. O bem-aventurado Henrique Suso guardava um
jejum rigoroso a fim de expiar as intemperanças cometidas. São Carlos Borromeu
castigava o seu corpo com disciplinas e penitências extraordinárias. São Filipe
Neri convocava o povo para visitar com ele os santuários e praticar exercícios
de devoção. O mesmo praticava São Francisco de Sales, que, não contente com a
vida mais recolhida que então levava, pregava ainda na igreja diante de um
auditório numerosíssimo. Tendo conhecimento que algumas pessoas por ele
dirigidas ficavam um pouco mais relaxadas nos dias de folia, repreendia-as com
brandura e exortava-as à comunhão frequente.
Numa palavra, todos os santos, porque amaram a
Jesus Cristo, esforçaram-se por santificar o tempo de Carnaval da melhor forma
possível. Meu irmão, se você ama também este Redentor amabilíssimo, imite os
santos. Se não pode fazer mais, procure ao menos ficar, mais do que em outros
tempos, na presença de Jesus Sacramentado, ou bem recolhido em sua casa, aos
pés Jesus crucificado, para chorar as muitas ofensas que são feitas a Ele.
Continuando a reflexão, Santo Afonso afirma que
para nos alegrarmos com ele nas suas riquezas, o meio para adquirirmos um
tesouro imenso de méritos e obtermos do céu as graças mais assinaladas é sendo
fiéis a Jesus Cristo em Sua pobreza e fazermos companhia a Ele neste tempo em
que é mais abandonado pelo mundo. Oh, como Jesus agradece e retribui as orações
e os obséquios que nestes dias carnavalescos são oferecidos a Ele pelas almas
prediletas d'Ele!
Conta-se que, na vida de Santa Gertrudes, certa vez
ela viu num êxtase o Divino Redentor que ordenava ao Apóstolo São João
escrevesse com letras de ouro os atos de virtude feitos por ela nesse período
[Carnaval], a fim de a recompensar com graças especialíssimas. Foi exatamente
neste mesmo tempo, enquanto Santa Catarina de Sena estava orando e chorando os
pecados que se cometiam na "quinta-feira gorda", que o Senhor a
declarou sua esposa, em recompensa (como disse) dos obséquios praticados por
ela nesse tempo de tantas ofensas.
Por fim, Santo Afonso nos convida a rezar da
seguinte forma: Amabilíssimo Jesus, não é tanto para receber os vossos favores
como para fazer coisa agradável ao vosso divino Coração, que quero nestes dias
unir-me às almas que Vos amam, para Vos desagravar da ingratidão dos homens
para convosco, ingratidão essa que foi também a minha, cada vez que pequei. Em
compensação de cada ofensa que recebeis, quero oferecer-Vos todos os atos de
virtude, todas as boas obras, que fizeram ou ainda farão todos os justos, que
fez Maria Santíssima, que fizestes Vós mesmo, quando estáveis nesta terra.
Entendo renovar esta minha intenção todas as vezes que nestes dias disser: Meu
Jesus, misericórdia. – Ó grande Mãe de Deus e minha Mãe Maria, apresentai vós
este humilde ato de desagravo a vosso Divino Filho, e por amor de seu
sacratíssimo Coração obtende para a Igreja sacerdotes zelosos, que convertam
grande número de pecadores.
Padre Clóvis Melo - Comunidade Canção Nova
http://blog.cancaonova.com/padreclovis/
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